Corrêa, Patricia
Rio de Janeiro: Paço Imperial, 2023.
Olhos, órbitas, flutuação, céu, linhas imaginárias e concretas, conexões simbólicas e físicas. Jogos de escala entre o minúsculo, como núcleo de expansão, e o imenso, suscetível a infinitas partições, ou entre as diversas invisibilidades e virtualidades que abrigam nossa experiência vital. Das moléculas ao cosmos, das formas orgânicas às formas constelares, da visão encarnada e sua restrita perspectiva ao rastreamento maquinal por lentes e sondas que multiplicam as superfícies e profundidades do visível. Esses são alguns dos caminhos de percepção e reflexão que nos dão acesso ao universo Tina Velho.
Como todo universo de artista, este tem suas imagens recorrentes e seus procedimentos estruturantes, que passam por várias mutações e ressignificações ao longo dos anos de trabalho. Comecemos pelo céu, motivo central na arte de todas as regiões e épocas, objeto de indagações e tratados espirituais e científicos. O céu dos astros, dos deuses, de satélites e pássaros. Em todo caso, espaço de escrutínio do olhar e da imaginação dessa artista muito interessada nas possibilidades de observarmos o céu desde a terra, mas também nas possibilidades de sermos observados desde o céu. Sentir-se dentro e fora de um corpo que olha, ver e ser visto, compõem a típica reversibilidade fenomenológica que foi experiência fundante na arte contemporânea brasileira. Tina parece ter despertado para essa reversibilidade em meados da década de 1990, a partir de seu envolvimento com tecnologias digitais de produção e processamento de imagens que ela passou a misturar às técnicas tradicionais cujo domínio adquirira na formação em Gravura na Escola de Belas Artes da UFRJ, como a gravura em metal e a litografia, além do desenho, da aquarela e da pintura.
Tais misturas participavam, certamente, de um “espírito do tempo” seduzido pelas relações entre arte e tecnologia, especialmente porque os novos meios e repertórios digitais – programas gráficos, pixelização, impressão eletrônica, internet, webcams –, reviravam os sentidos de materialidade e fixidez de matrizes e suportes típicos de sua formação como artista. Um mundo de volatilidades, interações, transformações, simultaneidades e alternâncias radicais de escala se abria com as então chamadas novas mídias, e Tina se dedicou a experimentá-las mantendo, no entanto, uma contínua atração pela dimensão artesanal, tátil, do fazer artístico. Essa aparente contradição entre o eletrônico e o manual, entre virtualidade e tatilidade, se preserva em todo seu trabalho e é só aparente porque, em arte, as divergências podem se cruzar, ou seja, viram complexidades que alimentam a produção. Sua intensa atuação, desde 1996, como professora e coordenadora na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, à frente do Núcleo de Arte e Tecnologia e das Oficinas da Imagem Gráfica, reforçou o sentido coletivo e experimental que seu trabalho foi adquirindo com o passar dos anos.
Um primeiro exemplo dessa reversibilidade despertada pelos meios digitais poderia ser a exposição Estado de Atividade Funcional, que Tina realizou em 2005 no Centro Cultural Telemar, no Rio de Janeiro. Mediante um estetoscópio disponível para auscultação do próprio coração, o visitante percebia a sobreposição entre seus batimentos cardíacos e as distintas pulsações sonoras e visuais que compunham o ambiente expositivo. Na videoinstalação Pulse, a projeção de imagens de vários pulsos, com suas peles e veias vibrantes, gerava montagens dinâmicas com a participação do público, que podia se aproximar de uma pequena câmera para ter seus olhos ou pele captados. Nos dois casos, os sistemas interativos criados pela artista mesclavam sensações do corpo próprio e de outros corpos, propondo um olhar de fora estando dentro e vice-versa – um tipo de curto-circuito entre os polos eu-outro ou sujeito-objeto que marca uma ramificação reflexiva da arte brasileira.
Mas o céu parece ser, na imaginação dessa artista, o grande reservatório poético da reversibilidade, do ver e ser visto. Isso fica patente na sua apropriação das imagens de câmeras de vigilância, especialmente aquelas de acesso público via internet, pois as câmeras inauguram uma consciência de que somos constantemente observados de cima, captados por fluxos incalculáveis, processados em níveis que transcendem em muito nosso campo de experiências e memórias. Esse novo olho que tudo vê desperta uma espécie de novo sublime, o sentimento empolgante mas também ameaçador de estarmos diante (ou dentro...) de algo que em muito supera nossos limites de ação e conhecimento.
É o lado fascinante do sentimento do sublime que mobiliza as pesquisas de Tina, em sua capacidade de produzir condensações espaço-temporais inéditas, como por exemplo aproximar na mesma superfície imagens captadas de uma estação espacial na órbita terrestre e imagens do desenrolar da vida em um ninho de águias em Iowa, nos EUA. No vídeo A Terra que Voa, realizado entre 2012 e 2019, essas imagens se tornam contíguas: a curvatura azul e movente observada pelos astronautas se funde com o microcosmo de um ninho e suas dinâmicas vitais – alimentar, proteger, crescer, voar – no topo de uma árvore. São imagens obtidas por webcams que, como muitas outras em todo o mundo, produzem pontos de vista que seriam impossíveis para quase todos nós, por nossas limitações corporais de visão e alcance. O vídeo mistura diferentes sentidos de “casa”, portanto de acolhimento, com um certo assombro pelas escalas vertiginosas e efeito de ubiquidade que requalificam nossa imaginação de um olhar onipotente, voando acima de nós.
Mas um traço desse sublime contemporâneo é justamente a reversão do assombro pela mediação tecnológica, que submete o que parece ilimitado e inapreensível aos códigos da linguagem eletrônica, produzindo fantasias perceptivas como a do “tempo real”. Muitos trabalhos de Tina Velho transitam por esse tipo de experiência que conjuga transbordamento e contenção, como sua série Livearth, feita a partir de transmissões de webcams de diferentes localidades combinadas em composições ortogonais. Em Mondrian Tropical, de 2008, a típica grade neoplástica é preenchida por paisagens filmadas no Havaí e em Miami, enquanto em Composição para o Branco, de 2012, a estrutura justapõe imagens ao vivo de uma estação de pesquisa na Antártica, recortes fluidos de uma paisagem dominada pela neve e pelo céu e em mudanças constantes. Em outros trabalhos, as paisagens filmadas ocupam duplamente uma superfície: fixadas por impressão, pintura ou desenho e também projetadas em movimento, sobrepostas, de modo a produzir certa fantasmagoria, o espelhamento e deslizamento de tempos afins mas dissonantes, como acontece com os duplos e sombras que se desprendem das figuras nas telas de Saída das Canoas, feitas entre 2014 e 2015 a partir de webcams na Praia de Matinhos, no Paraná.
A relação entre olhos e céu tem mesmo algo de sublime e algo de cotidiano. O mistério desse espaço onde o longe e o perto se encontram foi simbolizado pelo fundo dourado em pinturas românicas e medievais, que assim ressaltavam seu sentido místico e insondável. Com a formação das cosmovisões modernas, o céu cedeu à física, à matemática e ao naturalismo humanista, mas nem por isso perdeu suas dimensões espirituais e poéticas. A partir de 2009, Tina passou a usar folhas douradas e de ouro em pinturas e gravuras que sugerem espacialidades siderais, misturando as novas referências astronômicas a um motivo bastante longevo em seu trabalho, os pássaros. Suas formas roliças têm muitos antecedentes na trajetória de Tina, como os óvulos, ovos, casulos e seixos que aparecem em gravuras e desenhos desde a década de 1990. A partir do painel de grandes dimensões O caçador no céu dourado, iniciado em 2009 e concluído dez anos depois, uma forma curvilínea com um bico pronunciado passa a frequentar intensamente as composições e os objetos da artista: são pássaros-células, pássaros-nuvens, pássaros-constelações.
Muitos desses trabalhos foram reunidos na exposição Binários em 2019, no Paço Imperial do Rio de Janeiro. A palavra binário tem muitos usos, mas destacamos dois: o código binário da informática, ou seja, a dupla 0 e 1 que é a base da linguagem computacional, e as estrelas binárias da astronomia, que formam um sistema de 2 corpos celestes gravitacionalmente ligados entre si. Os dois usos valem aqui, pois conectam internamente o universo Tina Velho. A introdução do dourado, com sua capacidade pictórica desespacializante, denota o alto grau de abstração das linguagens técnicas e científicas subjacentes às operações de nosso dia a dia e que informam, mesmo sem percebermos, a visão de nosso lugar no todo, nossas relações com a memória e com o desconhecido. Trocas afetivas, conexões vitais, redes e interdependências são coisas invisíveis que, no entanto, sustentam nossa leitura do mundo. Os pássaros que enchem as telas e gravuras exibidas no Paço estão ligados pelos olhos – olhos que são estrelas, que formam constelações, que desenham o céu. A humanidade sempre viu formas de animais no céu, Tina parece ver as formas do céu nos animais.
Alguns trabalhos propõem a coincidência entre o céu dos astrônomos e o céu divino – uma experiência reveladora, mesmo que inexplicável. Levar os olhos ao céu é um gesto que ganha muitas camadas, inclusive novas mediações, como o aplicativo Star Walk que permite acompanhar as posições e movimentos dos objetos celestes ao vivo na tela de um celular, bastando apontá-lo para o céu. Na videoinstalação Agnus Dei, de 2019, essa visualização é projetada sobre uma pintura dourada em cujo centro encontra-se fixado um pingente com a imagem do Sagrado Coração de Jesus, objeto de proteção que dá nome ao trabalho. A sobreposição dessa pequena relíquia familiar com o céu captado pelo Star Walk produz uma surpreendente convergência entre tempos remotos e presentes, entre diferentes cosmologias que encontram na superfície dourada da tela um lugar comum. Essa e outras Relíquias – série de diminutas caixas transparentes contendo plumas de aves e libélulas – dão materialidade a um céu que é dos corpos e também dos espíritos, que é daqueles que olham para cima e também daqueles que olham para baixo, daquilo que se desfaz e daquilo que permanece.
2010 - present
2010 - present